O bairro da Cidade velha é um dos maiores referenciais do patrimônio histórico e cultural do Pará, de Belém, e também da minha infância, já meio distante no tempo e no espaço.
Suas ruas estreitas, sinuosas, outrora pavimentadas com pedras de granito apicoado (há tempos soterradas pelo asfalto da insensibilidade político-administrativa), sua vetusta e romântica arquitetura. (ou o que resta dela), onde os solares de fachadas em azulejo português, coroadas com pinhas em faiança finamente esmaltadas, as Igrejas e os palacetes em estilo imperial brasileiro e neoclássico nos falam do passado, dos esplendores do Ciclo da Borracha e guardam, ainda hoje, a memória dos índios, negros, mestiços e portugueses pioneiros no povoamento da cidade.
Guardam, também, a memória menos remota e mais pessoal das singelas brincadeiras a céu aberto dos jovens de minha geração, que ainda cresceram e se divertiram livremente nas ruas e nas praças antes da era do império da eletrônica, da informática, do Nintendo 64, do Playstation, dos condomínios fechados, dos celulares rastreadores, das balas perdidas, enfim, da paranóia da Aldeia Global.
Nasceu com a construção do Forte do Presépio, hoje Forte do Castelo, erguido a mando da Coroa portuguesa no início do século XVI, um dos palcos das lutas travadas em 1835 pelos Cabanos. Mas também de inúmeros combates de faz-de-conta entre mocinhos e bandidos, e, um pouco mais tarde, em meados dos 70, de gloriosas e inesquecíveis tertúlias dançantes HI-FI embaladas por Cuba Libre, mistura de coca-cola, rum, limão e gelo.
No bairro estão localizadas várias belas igrejas, como a de N. Sra. Do Carmo – minha preferida, onde ia à missa aos domingos de manhã, com seu frontal neoclássico, interior barroco com púlpitos em madeira entalhada e laqueada e altar todo em prata - construída em 1627 para abrigar o primeiro convento dos Carmelitas Calçados, da Capitania do Grão Pará -, e a Catedral Metropolitana da Sé, do século XVII, projeto do arquiteto italiano Antônio Landi, com seu imponente frontão ladeado por pináculos piramidais neoclássicos e seu órgão belíssimo, monumental, construído na oficina do artífice francês Aristide Cavaillé-Coll e instalado em 1882, o maior da América do Sul. Possui telas, afrescos e painéis de grande valor.
Nessa Catedral os ritos sagrados da Semana Santa assumiam contornos dramáticos para uma criança. Depois de percorrer todas as ruas do bairro, a imagem do Senhor Morto, com os olhos cerrados, durinho, coberto de cravos de defunto, ficava em exposição na Igreja, vestido de um tom lúgubre de púrpura em um caixão para ser beijado por homens, mulheres e crianças, num ritual da maior morbidez. No ar, um cheiro adocicado de flores fenecendo. Prá completar o clima, música fúnebre de fundo.
A Praça Dom Pedro II, ao lado da Praça do Relógio e do porto-mercado do Ver-o-Peso – onde despontam as torres azuladas do Mercado de Ferro, trazido desmontado da Inglaterra, em forma de decágono, com estrutura metálica de zinco veille-montaine em estilo neoclássico - é outra marca histórica do velho bairro. Considerada o "centro administrativo da Belém antiga", a praça abriga os prédios imponentes onde outrora funcionavam os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário.
Mas prá molecada essa era simplesmente a Praça dos Leões, cujas esculturas cavalgávamos impunemente e donde, ainda menino, testemunhei, espantado e sem nada entender a invasão do Palácio do Governo, em frente à praça, pelos militares em 31 de março de 1964.
Os portugueses trouxeram para o Brasil toda uma experiência colonizatória anterior na zona tropical do globo, na África, e assim edificaram amplas habitações plenamente adaptadas ao clima da região. Casarões confortáveis, geminados, com assoalhos e forros em madeira, telhas de barro, pé direito alto, dotados de porões e sótãos por onde o ar circula livremente e areja o ambiente quente, úmido e abafado da foz do rio Amazonas.
Foi onde vivi a maior parte dos anos inconseqüentes da transição da infância para a adolescência - e também os melhores da minha vida. Moramos sucessivamente em duas casas na mesma rua, Gurupá, entre as ruas Dr. Malcher e Dr. Assis, próximo ao Porto do Sal, onde meu pai trabalhava e onde eu nadava, pescava siris, mandiís e mandubés, no velho trapiche do rio Guamá, e onde também vivi as maiores aventuras exploratórias desta fase da vida. E onde escapei duas vezes de me afogar.
A gente andava de bicicleta, sem capacete, joelheira, cotoveleira ou qualquer outra proteção. Construíamos nossos próprios brinquedos, inclusive aqueles carrinhos de rolimã para descer as ladeiras, embalados, tendo como freio só a sola do sapato. Íamos brincar na rua com uma única condição: voltar inteiro prá casa ao fim do dia. E, por obra e graça divina, voltávamos.
E não dependíamos de nenhum fio, cabo ou fonte de energia, a não ser da nossa. Hoje, se formos desligados da tomada, nossa civilização desaparece.
3 Comentários:
Muito lindo o artigo, esse Brasil é grande e lindo mesmo. Um abração
A Cidade Velha nunca foi tratada com o devido respeito. Nem pelos governantes, nem pela maioria do povo. É uma pena que boa parte de seu acervo cultural já se tenha perdido, e, com ele, parte de nossa história.
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