sexta-feira, 27 de abril de 2012

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Mensagem para Frida


Quem costuma acompanhar os “Comentários recentes” aí no side bar, terá lido a troca de mensagens que começamos Frida e eu, relacionadas ao momento que ela e seu amigo atravessam, o diagnóstico recente de um linfoma. Tentando ampliar o âmbito desta troca de informações, decidi postar algumas impressões e responder algumas perguntas que ela me faz sobre o meu diagnóstico e tratamento, de modo que todos possam participar e eventualmente se beneficiar de alguma maneira, de acordo com a proposta do blog.

Frida (e amigo):

Vocês estão vivenciando a pior fase da doença, a do diagnóstico, que chega como um repentino tsunami varrendo tudo o que havíamos construído na nossa subjetividade, na nossa vida, na nossa relação com o mundo, deixando um rastro de desespero, sofrimento, um enorme vazio, um sentimento inimaginável de uma solidão indizível e a insônia das perguntas sem resposta que martelam impiedosamente, dia após dia. Isso acontece com todo mundo nessa fase. Não se culpem. Sinto muito, mas vocês não são exceção.

Quisera eu poder com meras palavras abreviar, fazer com que superem logo este momento doloroso, tão bem conhecido por aqueles que já passamos por isso. Mas tudo passa, tudo passa. Na sua infinita misericórdia, Deus dotou a natureza humana da capacidade de superação. Mas só o tempo e a fé consciente concorrem neste sentido. Continue se informando, Frida. Além de todas as vantagens, isto manterá sua mente ocupada. E se você puder leia também os arquivos de blogs como o meu e de amigos como a Lilian e o Edson Leite, entre tantos outros, e constatará por si mesma as mudanças positivas que se foram operando, com o tempo, no espírito destas pessoas que já superaram o pior desta primeira fase.

Dentro desta tormenta, seu amigo tem a sorte de contar com alguém como você. Por isso procure não se desesperar, mantenha a calma e a serenidade. Vejo pelo que escreve - e como escreve - que tem boa formação escolar, ética e religiosa, e isto será de grande valia nas suas pesquisas e na tomada de decisões daqui pra frente, se mantiver a cabeça no lugar. E assim poderá ser mais útil. E conte com a gente, não se feche sobre si mesma.

Para lhe dar a precisão que me pediu, ontem fui remexer nas pastas dos meus primeiros exames, laudos. Hoje, o tempo transcorrido me permite manusear estes exames, analisa-los com objetividade. Se você acha que isso pode de alguma forma lhe ajudar, o relatório do exame anatomopatológico emitido pelo Dptº de Patologia do Hospital de S. Paulo, UNIFESP, emitiu o seguinte laudo:

Diagnóstico: EXÉRESE DE LINFONODO MESENTÉRICO PRÓXIMO AO PÂNCREAS: LINFOMA NÃO-HODGKIN DIFUSO DE PEQUENAS CÉLULAS. Este diagnóstico foi complementado pelo exame imuno-histoquímico, realizado na mesma instituição, que emitiu o seguinte relatório: LINFOMA DE CÉLUAS B MADURAS, FOLICULAR GRAU II.

Com relação ao tamanho do linfoma, aí vai a transcrição de parte do laudo da tomografia que fiz em 21.07.2009:

Observa-se em topografia adjacente ao corpo e cauda do pâncreas, região do mesentério, imagem de processo expansivo sólido, hipoecogênico, de contornos nobulados, medindo 13,4 x 11,5 x 6,4 cm, hipervascularizada ao Power e Collor Doppler (...)."

Hoje, um diagnóstico de linfoma não é exatamente uma sentença de morte com data para ser executada. Os pacientes em tratamento podem tranquilamente viver por muito mais de 10 anos ou mesmo ser curados, contrariando prognósticos. O acúmulo de informações sistematizadas nos bancos de dados hoje disponíveis, resultado de décadas de experiência clínica, constituem uma massa crítica importante e eficaz na orientação da tomada de decisões sobre qual protocolo adotar. A evolução das pesquisas tem trazido contribuições importantes no tratamento, com novas drogas, novas associações e novos padrões de conduta consolidados. O transplante de medula se tornou algo rotineiro

Tenho um amigo aqui em Manaus, médico oncologista, agora aposentado, que trabalhou muitos anos com radioterapia no Hospital do Câncer e foi também Secretário de Saúde do Estado. Por ironia, ele só descobriu que tinha um linfoma deste tipo quando ele já havia evoluído para o estágio III. Depois de esgotar todos os protocolos de tratamento na época disponíveis (ainda não existia o Rituximabe, e a Bendamustina até 1990 só estava disponível na Alemanha oriental e não era ainda empregada no tratamento de LNH), ele passou pelo transplante autólogo de medula. Já se passaram 16 anos, ele ainda está vivo e vendendo saúde. Quando recebi o diagnóstico, ele me passou muita serenidade e confiança nas conversas que tivemos.

sexta-feira, 20 de abril de 2012

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O incrível e brilhante anel do homem que não tinha dedos

A Etimologia é a parte da Gramatica que estuda a origem e o significado das palavras através da análise dos elementos que as constituem. Em outras palavras, é o estudo da composição dos vocábulos e das regras de sua formação e evolução histórica. A palavra datilografia, por exemplo: do grego dáktylos, «dedo» + gráphein, «escrever» +-ia = “ação de escrever com os dedos”.
Há muitos anos eu conheci um homenzinho notável que amava a palavra escrita e desafiava ou parecia ignorar todos estes conceitos para dar lições de vida, pertinácia e superação. Mas, como parece que estou ficando velho, sentimental e cheio de recordações – algumas até interessantes, como esta - permitam-me um pouco de saudosismo de uma época recente, antes de falar brevemente deste homem que vivia para dar corpo e forma às palavras.

Nunca frequentei uma escola particular. E, se até o início da década de 70, estudar numa escola pública, no Brasil, podia ser considerado um privilégio conquistado por aprovação nos Exames de Admissão ao Ginásio (Língua Portuguesa e Matemática), estudar no Colégio Estadual Paes de Carvalho, em Belém, onde eu morava, era um privilégio para poucos, tal o nível de conhecimentos exigidos dos candidatos que se aventurassem nos duros exames dissertativos (nada de a-na-bu, bu-bu, pelo ra-bo do ta-tú) aplicados pelo estabelecimento fundado em 1841, hoje o segundo colégio mais antigo em funcionamento no Brasil, depois apenas do Pedro II, do Rio. 

O velho e imponente casarão da Praça da Bandeira mantém ainda hoje algumas características de outrora, como as escadarias separadas, uma para alunos, outra para alunas e uma terceira só para professores e funcionários. Mas os chamados “acordos de cooperação” MEC-USAID, que mudaram as bases e empobreceram o orçamento do então excelente ensino público do País, transferindo para o capital e para os empresários a responsabilidade da educação do cidadão brasileiro, minaram o que a escola tinha de melhor na sua finalidade, ou seja, a excelência de seu ensino, motivo de seu orgulho institucional.
Hoje, professores e alunos vivem de esmolas nas escolas públicas e as particlulares, com raras excessões, fingem que ensinam enquanto auferem lucros astronômicos... 

Dentre as inúmeras e enriquecedoras experiências vividas nesse ambiente de descobertas, uma, em especial, me tem recorrido à memória reiteradamente nesta fase de minha vida, como algo exemplar e emblemático da capacidade humana de superação e de valorização da existência diante de certas surpresas que a vida guarda pra gente. 

As gincanas promovidas pelo Centro Cívico eram realizadas no mês de junho na escola, e procurávamos a cada ano sempre apoiar de alguma forma o esforço das instituições filantrópicas de amparo ao idoso, aos órfãos, aos enfermos, carentes.

Naquele ano, eu e minha equipe tínhamos recebido, entre outras, a tarefa de recolher donativos para um asilo de portadores da enfermidade conhecida como Mal de Hansen, Lepra, Hanseníase, Morfeia, ou Mal de Lázaro, que é uma doença antiquíssima, infecciosa, contagiosa, há anos perfeitamente curável em seus estágios iniciais, causada pela bactéria conhecida como bacilo-de-hansen, que afeta os nervos, a pele e pode provocar incapacidade e deformidades. Nessa época costumava-se ainda isolar estes enfermos internando-os em asilos para tratamento em locais distantes das cidades, onde estariam sujeitos a todo tipo de constrangimento e discriminação.

A colônia ficava a cerca de 20 km da cidade e ocupava uma área equivalente a de um campo de futebol. Uma barreira de Jambeiros plantados em linha reta impedia que suas instalações fossem vistas facilmente da estrada. 

Havíamos chegado logo no inicio da tarde, tínhamos acabado de descarregar o caminhão de donativos e preparávamo-nos para partir, quando alguém veio nos avisar que a diretora do leprosário gostaria de nos receber antes de sairmos.

A diretora era uma médica infectologista alta e magra, de seus 55, 60 anos de idade, que falava com se estivesse com a boca cheia de bolinhas de gude e com um leve acento italiano, que nos recebeu sorridente em sua pequena sala, onde um daqueles retratos oficiais do então Presidente Garrastazu Médici, emoldurado e pendurado por detrás de sua escrivaninha, mirava o observador casual com um olhar frio e distante, quase cruel. Responsável pela Instituição há quase oito anos, como revelou, orgulhava-se de ter implantado o que chamava de “uma gestão conjunta”. Gabava-se de ter melhorado as condições de vida dos internos no leprosário e de ter desenvolvido programas de ressocialização com os pacientes curados. E, pela eloquência com que falava de sua rotina e pelo entusiasmo quase infantil que o brilho de seus olhinhos vivazes e saltitantes revelava, podia-se perceber a dedicação e o amor que tinha por seu trabalho.

Depois de alguns minutos conversando sobre o funcionamento do local, dentro dos quais ela providenciou para que fossemos servidos de refrigerantes, acompanhados por uma bela lata de Biscoitos Aymoré, fomos interrompidos por um leve toque na porta.

– Sim? - Perguntou a diretora, e pelo vão da porta entreaberta surgiu a cabeça grisalha de um homem moreno, de seus quarenta e poucos anos, que perguntou se podia entrar. Autorizado, o homem, franzino, dirigiu-nos um olhar de curiosidade seguido de algo que me pareceu um breve sorriso, pediu licença, discretamente, e caminhou até onde a médica estava sentada. Pude então observar em seu rosto as marcas inconfundíveis da doença. Viera avisar que os ofícios estavam prontos, aguardando pela assinatura da diretora, e perguntar se ela gostaria que ele os trouxesse. Ela disse-lhe que esperasse, pois havia ainda um documento a ser datilografado. Ele assentiu com a cabeça, agradeceu, voltou-se em direção à porta para deixar o aposento, e mal consegui disfarçar o susto quando notei que ele não tinha um único dedo nas mãos! Nas duas! Nem um coto residual, só as palmas!

O homem saiu da sala deixando atrás de si um silencio embaraçador, logo quebrado pelas palavras lentas e calculadas da médica: - A lepra não faz os dedos caírem – explicou professoral - mas, como ela atinge a pele e os nervos periféricos, o enfermo vai ter como que uma anestesia nas mãos e nos pés, o que o torna muito vulnerável. E assim ele estará exposto a sofrer uma lesão mais grave, como uma queimadura, não vai sentir dor, não vai cuidar e o machucado pode infeccionar, gangrenar e precisar ser amputado – concluiu.

Era evidente que ela tinha percebido a perturbação provocada em nosso espírito pelo inesperado da situação. Afinal, o mais velho do grupo tinha apenas dezesseis anos e ainda não tinha vivido o suficiente para enxergar determinadas realidades tão de perto.  Eu sentia a boca seca e tomei mais um gole de Grapette. Em seguida, como se lhe tivesse ocorrido uma grande ideia, a médica levantou-se, resoluta, pegou uma folha de manuscrito de cima de sua escrivaninha e, enquanto se dirigia à porta, convidou:

- Sigam-me, rapazes. Gostaria que vissem uma coisa muito especial, algo que guardarão para o resto da vida.