segunda-feira, 12 de março de 2012

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Quem não morre sempre aparece e tem a chance de encontrar o anel


Semana passada, depois de seis meses do exame anterior, voltei a me consultar com o Dr. Nelson, o hematologista do HEMOAM que vem cuidando de mim com muita competência e certa – eu diria – bem-vinda isenção. Levei os laudos dos exames que ele havia pedido: sem novidades. Tomografia do abdômen, raios-X do tórax, exames de sangue. Aparentemente tudo bem. Ficamos aliviados daquela tensão que sempre vai se acumulando com a aproximação da data dos exames de controle.
Estou com cerca de 10 kg acima do meu peso normal. Dizer que tenho apetite seria um eufemismo, uma simplificação. Tenho um apetite devorador e me tenho até lascivamente entregue as extravagâncias gastronômicas as quais, antes, minha austeridade alimentar não me permitia: tomo Coca-cola, como dessas guloseimas baratas, tipo jujuba e também bons doces que minha mulher, entre pesarosa, dividida e chantageada me prepara de vez em quando por insistência minha. Rango de tudo (não acham que esse verbo é de glutão?) fora de hora, frituras, e agora dei pra comer farinha de mandioca com muita frequência e levanto no meio da noite pra depenar a geladeira.

– Nada de frango anabolizado de supermercado; isso dá câncer, pô!

Transformei-me num devasso do garfo & faca!
Eu, que durante os últimos dez anos de minha vidinha me limitava no almoço – com muito prazer até - praticamente a uma ração de frutas secas e frutas frescas, leite de soja, gergelim e coisinhas do gênero, zero açúcar... coisinhas na chapa, e, no jantar, a uma sopinha com torrada, um café com leite e um pão com pouca manteiga de vez em quando. É. Eu mesmo.

Extravagância, que ninguém é de ferro, era exceção, não a regra.

Um belo dia de sol, numa "ultra" de rotina, ouvi gritarem: “Pensa rápido!”. E me atiraram no colo um cancerzinho linfático do tamanho de uma batata-doce das grandes pra eu deixar de ser besta.

Até malhar, eu malhava. Dentre outras práticas, cheguei a fazer tantas séries de abdominais que acabei ganhando uma hérnia, só descoberta há pouco, quando me viraram do avesso e descobriram também duas pedras enormes em um dos rins, um cisto grande no outro e gordura no fígado. E bem, como nem tudo na vida são flores comestíveis, eu mandava royalties pra rainha da Inglaterra toda vez que adubava a conta real comprando um maço de Carlton, viciosinho infame adquirido idiotamente por sabe-se lá quantos jovens pelo mundo todo, sob a influência da colonização cultural embutida nos filmes ianques da adolescência. Hollywood, imaginem, era marca de cigarro!

Atravesso um período difícil, sem motivação, sem horizonte. Só quem me conhecia bem antes dessa porra desse linfoma pode avaliar as mudanças que ele insidiosamente vem operando na minha personalidade, mais no meu equilíbrio emocional, pois alterou radicalmente a minha perspectiva do futuro, a minha percepção do presente e a minha relação com o próximo. “Mas os exames de controle deram negativo, meu caro”. “Bola pra frente!”.

Mas a merda é que ainda não encontrei minha posição nesse novo campo de jogo! Alias, sempre fui o maior perna-de-pau. O único gol que eu fiz eu tava na banheira...

Mas eu não sou totalmente burro ao ponto de não ter consciência de que fazer hoje tudo ao contrário do que procurava fazer antes não vai melhorar, em nenhum sentido, a situação geral. Ao contrário, agindo assim só tenho infantilmente magoado e preocupado as pessoas que me cercam e que me amam verdadeiramente, como Sandrinha, minha mulher. Chego a pensar que não mereço esse sentimento tão bonito, verdadeiro presente divino.

Volta-me agora à memória, com gratidão, um fato que me marcou profundamente certo dia em que eu, ainda um garotinho, sentado no batente de nossa casa no bairro da Cidade Velha, esperava o black-out que acontecia diariamente, no início da noite, em uma época de racionamento de energia em Belém. Os primeiros minutos eram de uma escuridão total até que as pupilas iam se adaptando gradualmente à nova situação.

Durante todo aquele verão, todas as noites, depois do jantar, eu me sentava ali e simplesmente aguardava o espetáculo começar. Eu não tinha consciência disso, mas ficava encantado com o mistério, o surrealismo que a ausência da energia e da luz artificial, por mais paradoxal que possa soar, parecia trazer de volta à minha realidade. Tudo me parecia mais fantástico e ao mesmo tempo mais natural, mais suave, mais agradável e mais indefinível. Eu me sentia imerso e inexplicavelmente protegido num elemento confortável onde respirar era um prazer consciente. E, hoje, eu sei que aquela deliciosa sensação - que àquela altura eu apenas intuía - tem a ver com a integração do ser com a natureza, a natureza primeira das coisas e dos seres na doce ilusão maiávica do espaço e do tempo compartilhados.

As pessoas então, já adaptadas às restrições do racionamento de energia, passaram a jantar mais cedo e depois se reuniam em torno de um lampião, conversavam, contavam histórias, riam...

Sentado lá, na solidão do batente da minha porta, quieto, eu os podia ouvir. E naquela penumbra que passava a reinar eu enxergava menos com os olhos, mas os demais sentidos ficavam mais aguçados e eu conseguia então ouvir também, vindos do meio da substância da noite, os ruídos de fundo da natureza trazidos à tona pelo silêncio forçado dos aparelhos de TV, condicionadores de ar, geladeiras, freezers e toda essa tralha eletrodoméstica da qual nos tornamos demasiadamente dependentes.  

Naquela noite, logo que se fez breu, impulsionado apenas pela noção imperiosa de que tinha que levantar e atravessar a rua e sem saber o porquê, simplesmente me vi caminhar no escuro, mecanicamente, até o batente da casa em frente a nossa, abaixar-me e, ainda imerso na mais absoluta escuridão, colher alguma coisa invisível, pequena e fria entre o polegar e o indicador da mão direita. Tudo isso aconteceu tão rápido que não devo ter levado mais que 1 minuto para cobrir os cerca de 8 m de ida e volta na rua estreita.

Já sentado, de volta ao meu batente e à minha consciência inocente de garoto de 7-8 anos, senti que tinha algo na mão direita e aos poucos, as pupilas se dilatando pude enxergar melhor na escuridão. Meus olhos foram distinguindo o brilho sedoso de um pequeno anel dourado na minha mão que se abria lentamente. Depois de alguns instantes de ingênua perplexidade enfiei-o no meu anelar e ele me coube perfeitamente. Eu experimentava o mais genuíno sentimento de alegria, de que algo de muito bom me tinha acontecido naquela noite, algo inexplicável, muito além do simples achado de uma joia.