Freud
assume o princípio do prazer como sendo a função geral do psiquismo, sendo a
procura do prazer e a fuga do desprazer um fato presente tanto nos processos mentais
conscientes e inconscientes. E, em se tratando de prazer oral (gastronômico,
bem entendido), concordo com Woody Allen quando diz que a realidade é dura, mas
ainda é o único lugar onde se pode comer um bom bife.
Comer
é algo que ultrapassa a mera necessidade de se manter a existência, de se
alimentar. É algo cultural também. É o primeiro prazer na vida, quando
começamos a mamar aconchegados no colo e no peito da mamãe. É também o último e
mais persistente - e talvez o único, na velhice, depois de ultrapassadas as etapas
da vida jovem e madura dos prazeres da sexualidade, do amor, cujo gozo envolve
a paternidade quase que como uma possibilidade, apenas.
Podemos
conhecer melhor uma pessoa através de seus hábitos alimentares, da importância
que atribui à alimentação, de seus conhecimentos de gastronomia, pela maneira
como se comporta à mesa, empunha um talher ou uma taça.
Este conto da vida real nos mostra de
uma maneira crua, apenas com uma discreta pitada de bom humor - pra temperar - os
transtornos alimentares que na maioria das vezes acompanham o tratamento do
câncer, que podem se tornam uma tortura para os mais gourmands.
Por Dráuzio Varela
Tive um paciente de sessenta anos,
cujos pais abastados transformavam cada refeição numa obra de arte, segundo o
ouvi repetir nem sei quantas vezes. Fez com eles várias viagens à Europa, onde
se hospedavam em hotéis de luxo e frequentavam restaurantes refinados. Além do
cultivo permanente dos prazeres mais sutis que o paladar humano é capaz de
discernir, do berço herdou um maneirismo formal, várias propriedades e dona
Esmeralda, cozinheira negra bem-humorada, de corpo farto, que tinha servido a
seus pais desde mocinha.
Esse senhor, sempre de paletó escuro
com lencinho dobrado no bolso, foi operado de um câncer de estômago no início
da década de 80 e evoluiu bem por dois anos, durante os quais fez três viagens
gastronômicas com a esposa à Provença, no interior da França. A doença retornou
sob a forma de uma massa tumoral que aos poucos comprimiu as alças intestinais logo
abaixo do local de onde o estômago havia sido retirado. Ele definiu o primeiro
sintoma da recaída como uma sensação aflitiva de empachamento após um almoço na
casa de amigos, a qual só passou quando conseguiu vomitar. Jogou a culpa do
mal-estar num salmão defumado importado da Noruega pelos anfitriões, iguaria
rara no Brasil naquele tempo, com a qual mantinha uma relação conflitante de
gula e má digestão.
Na
semana seguinte o quadro se repetiu. Dessa vez, depois de uma refeição caseira:
- Não entendi, doutor. Tinha comido um
filé alto ao molho madeira, com petit-pois,
rodelas de cenoura na manteiga e arroz selvagem, prato que dona Esmeralda faz
há anos.
A partir desse dia, instalou-se um
conflito acirrado entre a variedade de sabores arquivados em sua memória e a
incapacidade progressiva de obtê-los. Sentindo o apetite esvair-se, encomendava
à dona Esmeralda os pratos mais trabalhosos. A cozinheira atinha-se fielmente às
orientações e ainda criava múltiplas alternativas para ajudá-lo, mas na hora
das refeições o que acontecia era desapontador: ele achava tudo insosso e ficava
irritado com os pequenos defeitos que julgava responsáveis pela falta de prazer
à mesa - o ponto de cozimento, o excesso de determinado tempero, a escassez de
outro, a consistência do caldo.
A
esposa e os filhos faziam via-sacra pelos melhores restaurantes da cidade,
atrás dos pratos mais extravagantes com que ele cismava, apesar de saberem que
o resultado final seriam algumas garfadas e uma lista interminável de
impropérios contra os cozinheiros despreparados de hoje. Numa das consultas,
quando sua mulher comentou que ele reclamava de todos os pratos que lhe
traziam, sem exceção, ele se justificou:
- Em São Paulo não existe restaurante
bom.
Conhecedor da natureza da doença que o
enfraquecia, curiosamente atribuía à qualidade dos alimentos e à forma de
prepara-los a razão única de seus males. Parecia crer fervorosamente, contra o
bom senso mais elementar, que os poderes de uma refeição elaborada com
requintes imaginários iriam livra-lo das dificuldades que enfrentava. A doença
evoluiu com anorexia cada vez mais pronunciada e fraqueza incapacitante. A
debilidade era tanta que ele só levantava da cama para ir ao banheiro mal
conseguia engolir algumas colheradas de mingau, sopa, ou tomar um gole de leite
batido com frutas, alimentos sólidos, nem pensar. Graças ao Edson, nosso enfermeiro,
que diariamente lhe administrava um litro de soro, pudemos mantê-lo ainda por algum
tempo no convívio com a família.
Às vésperas da internação hospitalar
definitiva, quando a esposa acordou, não o viu na cama. Encontrou-o na cozinha,
dando instruções para dona Esmeralda preparar uma perna de cabrito com batatas
coradas e brócolis ao alho e óleo. Mesmo convencida da inutilidade da
iniciativa, as duas mulheres se esmeraram no assado.
Estavam enganadas: ele comeu pouco, é
verdade, mas com tanto gosto que elas se emocionaram. Antes de voltar para o
quarto, ainda pediu duas fatias de pudim de leite condensado. Foi um milagre de
Deus, comentou dona Esmeralda, chorando, com a patroa.
Extraído da obra de Dráuzio Varela “Por Um Fío”. Editorial pelo autor do
blog e ilustração editada do GoogleImages.
3 Comentários:
Estive lendo este post e me lembrei que a principal recomendação de meus médicos(onco , cardio e masto) é com relação a alimentação, inclusive tenho umas postagens sobre o assunto. Estou feliz por você me seguir.
Enquanto tem apetite tem esperança
Caro Daniel, estou saudosa...por onde andas??? Dê o ar da sua graça...
Abraço afetuoso
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