quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

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Náuseas


Freud assume o princípio do prazer como sendo a função geral do psiquismo, sendo a procura do prazer e a fuga do desprazer um fato presente tanto nos processos mentais conscientes e inconscientes. E, em se tratando de prazer oral (gastronômico, bem entendido), concordo com Woody Allen quando diz que a realidade é dura, mas ainda é o único lugar onde se pode comer um bom bife.
Comer é algo que ultrapassa a mera necessidade de se manter a existência, de se alimentar. É algo cultural também. É o primeiro prazer na vida, quando começamos a mamar aconchegados no colo e no peito da mamãe. É também o último e mais persistente - e talvez o único, na velhice, depois de ultrapassadas as etapas da vida jovem e madura dos prazeres da sexualidade, do amor, cujo gozo envolve a paternidade quase que como uma possibilidade, apenas.
Podemos conhecer melhor uma pessoa através de seus hábitos alimentares, da importância que atribui à alimentação, de seus conhecimentos de gastronomia, pela maneira como se comporta à mesa, empunha um talher ou uma taça.
Este conto da vida real nos mostra de uma maneira crua, apenas com uma discreta pitada de bom humor - pra temperar - os transtornos alimentares que na maioria das vezes acompanham o tratamento do câncer, que podem se tornam uma tortura para os mais gourmands.

Por Dráuzio Varela
Tive um paciente de sessenta anos, cujos pais abastados transformavam cada refeição numa obra de arte, segundo o ouvi repetir nem sei quantas vezes. Fez com eles várias viagens à Europa, onde se hospedavam em hotéis de luxo e frequentavam restaurantes refinados. Além do cultivo permanente dos prazeres mais sutis que o paladar humano é capaz de discernir, do berço herdou um maneirismo formal, várias propriedades e dona Esmeralda, cozinheira negra bem-humorada, de corpo farto, que tinha servido a seus pais desde mocinha.

Esse senhor, sempre de paletó escuro com lencinho dobrado no bolso, foi operado de um câncer de estômago no início da década de 80 e evoluiu bem por dois anos, durante os quais fez três viagens gastronômicas com a esposa à Provença, no interior da França. A doença retornou sob a forma de uma massa tumoral que aos poucos comprimiu as alças intestinais logo abaixo do local de onde o estômago havia sido retirado. Ele definiu o primeiro sintoma da recaída como uma sensação aflitiva de empachamento após um almoço na casa de amigos, a qual só passou quando conseguiu vomitar. Jogou a culpa do mal-estar num salmão defumado importado da Noruega pelos anfitriões, iguaria rara no Brasil naquele tempo, com a qual mantinha uma relação conflitante de gula e má digestão.

Na semana seguinte o quadro se repetiu. Dessa vez, depois de uma refeição caseira:
- Não entendi, doutor. Tinha comido um filé alto ao molho madeira, com petit-pois, rodelas de cenoura na manteiga e arroz selvagem, prato que dona Esmeralda faz há anos.

A partir desse dia, instalou-se um conflito acirrado entre a variedade de sabores arquivados em sua memória e a incapacidade progressiva de obtê-los. Sentindo o apetite esvair-se, encomendava à dona Esmeralda os pratos mais trabalhosos. A cozinheira atinha-se fielmente às orientações e ainda criava múltiplas alternativas para ajudá-lo, mas na hora das refeições o que acontecia era desapontador: ele achava tudo insosso e ficava irritado com os pequenos defeitos que julgava responsáveis pela falta de prazer à mesa - o ponto de cozimento, o excesso de determinado tempero, a escassez de outro, a consistência do caldo.


A esposa e os filhos faziam via-sacra pelos melhores restaurantes da cidade, atrás dos pratos mais extravagantes com que ele cismava, apesar de saberem que o resultado final seriam algumas garfadas e uma lista interminável de impropérios contra os cozinheiros despreparados de hoje. Numa das consultas, quando sua mulher comentou que ele reclamava de todos os pratos que lhe traziam, sem exceção, ele se justificou:
- Em São Paulo não existe restaurante bom.

Conhecedor da natureza da doença que o enfraquecia, curiosamente atribuía à qualidade dos alimentos e à forma de prepara-los a razão única de seus males. Parecia crer fervorosamente, contra o bom senso mais elementar, que os poderes de uma refeição elaborada com requintes imaginários iriam livra-lo das dificuldades que enfrentava. A doença evoluiu com anorexia cada vez mais pronunciada e fraqueza incapacitante. A debilidade era tanta que ele só levantava da cama para ir ao banheiro mal conseguia engolir algumas colheradas de mingau, sopa, ou tomar um gole de leite batido com frutas, alimentos sólidos, nem pensar. Graças ao Edson, nosso enfermeiro, que diariamente lhe administrava um litro de soro, pudemos mantê-lo ainda por algum tempo no convívio com a família.

Às vésperas da internação hospitalar definitiva, quando a esposa acordou, não o viu na cama. Encontrou-o na cozinha, dando instruções para dona Esmeralda preparar uma perna de cabrito com batatas coradas e brócolis ao alho e óleo. Mesmo convencida da inutilidade da iniciativa, as duas mulheres se esmeraram no assado.

Estavam enganadas: ele comeu pouco, é verdade, mas com tanto gosto que elas se emocionaram. Antes de voltar para o quarto, ainda pediu duas fatias de pudim de leite condensado. Foi um milagre de Deus, comentou dona Esmeralda, chorando, com a patroa.

Extraído da obra de Dráuzio Varela “Por Um Fío”. Editorial pelo autor do blog e ilustração editada do GoogleImages.

3 Comentários:

Martha Rocha Avelino disse...

Estive lendo este post e me lembrei que a principal recomendação de meus médicos(onco , cardio e masto) é com relação a alimentação, inclusive tenho umas postagens sobre o assunto. Estou feliz por você me seguir.

Anônimo disse...

Enquanto tem apetite tem esperança

Anitha disse...

Caro Daniel, estou saudosa...por onde andas??? Dê o ar da sua graça...
Abraço afetuoso