terça-feira, 30 de agosto de 2011

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Inveja


Do canto em que me encontrava, pude admirá-la com discrição. De vestido claro, cabelo curto e olhos verdes que coloriam o rosto sem maquiagem, ela tomava uma xícara de chá no intervalo anterior ao segundo ato d'O baile de máscaras, no primeiro andar da Ópera de Estocolmo, um salão com paredes, teto e ornamentações reluzentes de ouro. Subitamente, o ar pensativo se transfigurou num sorriso que iluminou a sala. Fiquei de tal forma encantado por ela, que só percebi a quem a expressão de alegria se destinava quando um rapaz loiro chegou perto o suficiente para beijá-la. De terno cinza-escuro, camisa branca de gola rolê, corpo esguio e traços herdados dos ancestrais vikings, ele estava à altura da beleza da moça; parecia um casal de artistas de cinema.

Por Drauzio Varela
Depois do beijo, conversaram animadamente durante todo o intervalo. Fiquei curioso a respeito deles. Quanta diferença haveria entre nascer num lugar sem gente pobre como Estocolmo e num bairro operário de São Paulo? Se eu tivesse recebido a mesma educação e fosse tão bonito quanto aquele rapaz, minha vida teria sido mais fácil? Mais feliz?

Sozinho, no burburinho polido das pessoas bem-vestidas do salão de ouro, senti uma inveja como as da infância, difícil de entender. Queria ter tido as mesmas oportunidades e ser bonito como ele, mas sem deixar de ser quem sou, encarnar meu espírito em seu corpo por um tempo, viver travestido na sua pele, naquele país culto, organizado, sem miséria por perto, atraindo olhares admirados das mulheres.

Terminada a ópera, voltei debaixo de uma garoa fina para o pequeno apartamento de hóspedes que o Instituto Karolinska me cedera, durante o estágio hospitalar a convite dos velhos amigos Ulrich Ringborg e Sam Rotstein. Cheguei com as meias ensopadas e com tanto frio que corri para tomar banho, projeto imediatamente frustrado pelo mau humor do chuveiro, que se recusou a deixar cair sequer um pingo de água  quente. Agasalhei-me o quanto pude e sentei junto ao aparelho de calefação, com saudades de estar em casa ao lado de minha mulher.

Naquele estágio passei por várias clínicas, nas quais acompanhava consultas ambulatoriais e visitas à enfermaria. Um dos serviços visitados atendia pacientes portadores de linfoma, tipo de câncer que geralmente se manifesta sob a forma de gânglios aumentados no pescoço, axilas, virilhas, e nas regiões internas em que essas estruturas estão concentradas. O chefe do grupo se chamava Bo Johanson, tinha pouco mais de cinquenta anos e era tão míope que sem óculos não conseguia enxergar a caneta em cima da mesa. Bo se distinguia não apenas pelo conhecimento da especialidade, mas pelo hábito de fumar dois maços de cigarros por dia, raridade entre médicos na Escandinávia.

Sua notória dependência de nicotina era folclórica entre os colegas; contavam que uma vez, depois de ter permanecido por quatro horas na sala de cirurgia, deu uma tragada tão profunda que consumiu dois terços do cigarro.

Noutra ocasião, em noite de insônia, já tendo percorrido a cidade a pé atrás de um bar aberto, tocou a campainha na casa de um amigo fumante às duas da madrugada, liberdade intolerável entre suecos. A esposa atendeu, à janela:
- O que o senhor deseja a esta hora?
- Dois ou três cigarros para um paciente meu que está passando muito mal.

Nossa rotina no ambulatório era rever o prontuário do doente, antes de chamá-lo. Religiosamente, a cada três atendimentos ele interrompia solene: “Time for a cigarette” e saíamos para o jardim, numa temperatura abaixo de zero. Eu ainda tomava o cuidado de vestir o capote, ele não. Discutíamos os casos vistos, enquanto a brasa do cigarro não encostava no filtro, ou até meu queixo começar a bater e os lábios congelados a embaralhar as palavras. Nessa hora, ele fazia alguma referência jocosa ao baixo limiar de regulação térmica dos habitantes dos trópicos, e dava a última tragada, com gosto. Apesar do rosto afogueado pelo vento e das mãos roxas, era impressionante como conseguia resistir, fleumático, só com o avental por cima da camisa.

Numa das manhãs, atendemos a um dos primeiros refugiados políticos do Chile a chegar a Estocolmo. Fiquei comovido com a situação do rapaz, com quem tive oportunidade de conversar por alguns minutos, enquanto Bo saiu da sala para cuidar de um doente internado. Era um engenheiro de trinta e dois anos que perdera a esposa e o irmão mais velho, aprisionados no estádio de futebol de Santiago, nos primeiros dias da ditadura Pinochet. Desesperado ao saber das mortes, empreendeu com documentos falsos uma longa fuga para Mendoza, na Argentina, onde se asilou na representação da Suécia. Dois meses depois de desembarcar em Estocolmo, mal havia conseguido emprego na construção civil, notou a presença de um tumor de crescimento rápido na axila direita. Como a previdência social daquele país garante igualdade de direitos aos asilados políticos, estava sendo acompanhado no Instituto Karolinska com as regalias de qualquer cidadão sueco.

Em relação aos cuidados recebidos não tinha queixas: pelo contrário, reconhecia que não teria acesso a tantos recursos e competência profissional em Santiago. Seus problemas eram de ordem emocional:
- Estou doente, sozinho, neste frio de Estocolmo, sem poder voltar para o meu país. De minha família sobraram meus pais, já velhos, a quem poupei de mais este desgosto, e alguns primos e tios com quem perdi contato há anos. Escapei da morte certa no Chile, mas já nem sei se foi sorte. Será que não é mais triste morrer solitário, numa enfermaria de um país estranho?

Dei a ele meu telefone no hospital e me pus à disposição para o que julgasse necessário. Insisti que não deixasse de me chamar em caso de dúvida ou mesmo para conversarmos num fim de tarde. Quando virou as costas, senti a inutilidade do oferecimento: em poucos dias eu não estaria mais lá! Graças a Deus tinha para onde voltar, pensei sem querer, e esse pensamento me trouxe alívio.

Mais dois ou três cigarros fumados por Bo em minha companhia congelada, e folheamos um prontuário grosso como uma lista telefônica. Era um caso de linfoma de evolução lenta, controlado por ele fazia oito anos com tratamentos conservadores que induziam remissão completa dos sintomas e dos gânglios aumentados, sem muitos efeitos colaterais, mas não curavam a enfermidade. As duas primeiras remissões duraram dois anos, mas as subsequentes foram gradativamente mais curtas; a última delas fora mantida por apenas dois meses. Desconfiado de que a doença dessa vez tinha se transformado numa variedade mais grave, Bo tomara a precaução de pedir biópsia de um dos gânglios cervicais. O resultado anexo ao prontuário confirmava as piores suspeitas: o linfoma sofrera transformação num tipo de alta agressividade.

Bo perguntou minha opinião sobre o caso. Argumentei que o único tratamento com alguma chance de levar à cura seria um transplante de medula óssea, procedimento novo na época, porém só exequível se o paciente tivesse um irmão ou uma irmã para servir de doador; sugestão de nenhuma valia, porque o rapaz era filho único. A alternativa seria tentar novos esquemas de drogas que pelo menos pudessem controlar a doença por algum tempo.

Quando a enfermeira abriu a porta, custei a acreditar: o doente era o rapaz bonito da ópera! Como naquela noite, usava camisa de gola alta para encobrir os gânglios saltados e a cicatriz da biópsia.

Extraído do Livro de Drauzio Varella, “Por um Fío”

2 Comentários:

Anônimo disse...

PERFEITO!

Lilian disse...

Não sabia que Drauzio Varella escrevia contos tão bem, fiquei envolvida, enebriada com a beleza, infelizmente no final, despertada pelo impacto do final, descobri ser vida real. Faz-nos pensar, as vezes queremos a vida do outro, até invejamos sua sorte, sem lembrar que cada um tem a sua vida, suas cruzes, sua sorte... Quantas vezes nessa nossa luta, não imploramos a Deus para que Ele nos liberte, nos esquecendo que o que é nosso, nosso é. Por mais doloroso que seje, e no nosso caso, é demais da conta...

Dani querido, agradeça o carinho e as orações a Sandra. Diz a ela que amei o comentário dela; mais ainda do seu, imagine eu te ajudar, vc que me ensina e me põe a parte do que rola neste mundo... beijos querido, muita saúde pra vc sempre.