quarta-feira, 30 de novembro de 2011

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A Filha Do Professor


Esta história de esperança contagiante, extraída da experiência profissional deste médico sensível e dedicado nos mostra, tendo como drama central o câncer de uma garotinha, o confronto de ideias entre duas gerações de médicos, a evolução da ciência no combate sem tréguas à doença e a permanência dos valores éticos e morais no exercício da medicina, contrapondo-se à arrogância, à presunção e ao anacronismo profissional. Mostra-nos também que o dinheiro não compra tudo, muito menos a alegria inebriante de devolver a vida a uma criança condenada erroneamente pela vaidade de um médico, neste caso, o próprio pai.

Por Dráuzio Varela

Sentei com as caixas de slides no tapete da sala para preparar a aula da manhã seguinte. Minhas filhas, Mariana, de quatro anos, e Letícia, de dois, vieram brincar em volta; estava tão cansado no final daquela tarde que cochilei deitado no chão. Acordei com o telefone. Havia dormido o tempo suficiente para as meninas tirarem todos os slides das molduras numeradas e espalharem as fotos pela sala inteira.

No telefone estava meu ex-professor de patologia. Ligava por iniciativa própria para falar do caso de uma menina de dez anos recém-operada de um tumor pélvico do tamanho de uma bola de futebol, diagnosticado por ele como um tipo raro de sarcoma.

Naquela época, meados dos anos 70, surgiam nos Estados Unidos os primeiros grupos multidisciplinares que revolucionaram a cancerologia. Esses grupos integravam protocolos que incluíam cirurgia, radioterapia e quimioterapia administrados de forma sistematizada a grande número de pacientes, em estudos cooperativos conduzidos concomitantemente em vários centros internacionais, de modo que os fatores prognósticos pudessem ser analisados com precisão e as respostas clínicas avaliadas segundo critérios menos subjetivos. O tratamento do câncer abandonava o empirismo de obedecer à intuição e à experiência pessoal de cada médico, para ser decidido com base em evidências científicas.

Expliquei ao patologista que no caso deveria ser aplicado o protocolo do Intergrupo Internacional criado especialmente para estudar aquele tipo de sarcoma, que depois da cirurgia preconizava dois anos de quimioterapia seguida de radioterapia, com resultados muito animadores. Quando terminei, ele me pediu um favor: - Você poderia dar um pulo agora na casa do professor Torres e repetir para ele o que disse para mim? O caso é o da filha dele.

O professor Torres era um homem de mais de setenta anos, cirurgião lendário, controvertido, de temperamento intempestivo, personalista em extremo, dotado de habilidade incontestável, que havia sido pioneiro na padronização das técnicas cirúrgicas no Brasil. Fazia parte de uma geração de cirurgiões afeitos ao estrelismo, diante dos quais os assistentes se calavam mesmo quando tinham razão e que, no campo operatório, atiravam na parede os instrumentos passados de forma inadequada. Nas aulas práticas, ao terminar operações complicadas, comprazia-se em levantar as mãos na direção dos alunos para exibir as luvas impecavelmente limpas de sangue.

Achei melhor ir antes do jantar, era perto de casa; na volta daria um jeito nos slides destroçados.

O professor me recebeu de terno e gravata no sofá da sala. Contou que a esposa havia notado uma tumoração no baixo-ventre da menina. Dois dias depois, ao palpar o abdômen da filha por insistência da mulher, tomou um susto: - Como era possível um tumor tão grande numa criança tão saudável?

Supondo tratar-se de uma lesão benigna, ele mesmo realizou a cirurgia. Encontrou um tumor maligno de mais de um quilo junto à parede da bexiga, além de diversos implantes menores espalhados pelos tecidos vizinhos. Retirou a lesão grande e a parte que foi possível das pequenas.

Pela primeira vez na carreira, chorou no final de uma operação.


Em tom respeitoso, repeti a explicação dada ao patologista pelo telefone: mencionei os dois anos de quimioterapia e enfatizei que, apesar de os implantes tumorais não terem sido completamente retirados, a doença ainda era curável. Ele discordou com veemência:

- Não sejamos sonhadores, não existe a menor possibilidade de cura numa situação como essa.
- O senhor está enganado, a literatura é clara: pelo menos a metade dos doentes nesse estádio clínico são curados pela quimioterapia seguida de irradiação da região afetada!
Ele interrompeu:
- Quantos anos você tem?
- Trinta e quatro.
- Você nem tinha nascido, eu já operava doentes com câncer.

Em consideração à dor do pai não me senti ofendido, pelo contrário, procurei outras palavras para justificar de novo a eficácia do tratamento. Em vão; o professor pertencia à geração que assistira ao nascimento da quimioterapia, logo depois da Segunda Guerra, quando o mecanismo de ação das drogas utilizadas era mal conhecido e seus efeitos tóxicos muitas vezes sobrepujavam os benefícios obtidos. O preconceito contra esse método de tratamento estava tão arraigado em seu espírito que ele se negava até mesmo a pensar na hipótese de combater a doença da filha:

- Trouxe a menina para casa no segundo dia do pós-operatório, contra a recomendação de meus assistentes, justamente para evitar que judiassem dela. Pelo menos terá paz enquanto estiver viva.

Ainda assim, insisti; relatei casos de crianças curadas da mesma enfermidade e descrevi os avanços recentes da oncologia pediátrica. Tudo inútil: ele olhava com descrédito, como se ouvisse o aluno adolescente deslumbrado com as primeiras experiências clínicas. No fim, considerei prepotente sua obstinação diante da tragédia que ameaçava a filha, levantei, desanimado, e me dirigi à porta:

- Lamento não ter conseguido convencê-lo. Espero que o senhor tenha a humildade de ouvir outros especialistas, para não se arrepender quando for tarde.
- Não leve a mal, agradeço sua boa intenção, mas sei muito bem o que estou fazendo.

Fiquei irritado com o ar autoritário - frequente nos professores de medicina daquele tempo -, com a oportunidade perdida de jantar com minhas filhas e, especialmente, com a segurança pretensiosa manifestada na última frase.

- Infelizmente, não sabe, professor. O senhor pode ter operado adultos com câncer de estômago, pulmão, intestino. Sarcomas são tumores raros nas crianças, o senhor não tem experiência nenhuma com eles, mas ousa discutir como se tivesse.

Abri a porta e dei boa-noite. Ele não respondeu, permaneceu imóvel no sofá. Já estava do lado de fora, quando ouvi sua voz em tom abafado:

- Volte, por favor.

A menina tinha olhos negros e usava maria-chiquinha com elásticos cujas cores variavam conforme o dia da semana. Criada entre adultos, os modos calmos, o jeito educado de falar, o vocabulário repleto de recursos inesperados para a idade e os vestidos sempre bem passados davam a ela a aparência de personagem de livro infantil.

Aceitou com naturalidade a explicação de que precisava tomar soro toda semana. Vinha sempre acompanhada da mãe e da governanta espanhola que cuidava dela desde o nascimento. Na primeira vez, virou o rosto e ensaiou um choro que não se concretizou, quando a enfermeira Teodora pegou a veia para infundir o soro - reação que não se repetiu nas administrações seguintes. Sem um fio de cabelo, passava três horas na clínica, com o soro gotejando, um ursinho no colo e a atenção presa nas histórias que a mãe lia para entretê-la. Em pouco tempo virou o xodó de todos nós.

O pai, ao contrário do esperado, jamais se intrometeu nas condutas tomadas depois daquela conversa inicial. Quando a menina tinha algum problema, a mãe telefonava; ele se limitava a telefonar após as avaliações radiológicas periódicas, apenas para certificar-se de que tudo continuava bem. A única vez em que tomou a liberdade de interferir foi mal sucedido: havia receitado para a filha um complexo vitamínico que a governanta se recusou a comprar sem minha autorização. Na convivência, aprendi a admirar-lhe outros aspectos da personalidade: a cultura clássica adquirida com os jesuítas, o gosto pela porcelana chinesa, a fluência do português, a paixão pela cirurgia.

Quando haviam se passado cinco anos da operação, ele veio ao consultório:

- Pelo que minha senhora disse, entendi que você deu alta para minha filha.
- É verdade, acho que está curada.
- Queria agradecer sinceramente, essa menina nasceu no dia em que fiz sessenta e três anos, é o bem mais precioso de minha vida. Sabe, em minha casa tenho um quarto cheio de inutilidades recebidas de meus pacientes agradecidos, não pretendo fazer o mesmo com você. Gostaria de lhe dar um presente desejado, algo que você gostaria de ter, mas não pôde: um automóvel, uma viagem, uma obra de arte.
- Professor, isso é exagero!
- Mas faço questão absoluta, vocês são profissionais e trataram minha filha sem cobrar. Não tenha pressa, pense, consulte sua esposa, voltaremos a falar.

Fiquei sem saber o que pensar quando ele saiu. Mais confuso ainda fiquei no final da tarde, quando o motorista da família entregou uma garrafa de uísque com um bilhete: "Pela dedicação demonstrada no tratamento de nossa filha, os agradecimentos do professor Torres e senhora".

Nunca mais nos vimos. Dois anos mais tarde soube de sua morte pelos jornais. A menina, encontrei adulta, ao lado do marido e de um casal de filhos pequenos, num restaurante. Identificou-se com timidez, mas depois me deu um abraço carinhoso e chorou. Sorrindo, o marido disse que era sempre assim, ela chorava toda vez que me via aparecer na televisão.

Editorial pelo autor do blog e ilustração do Googleimages

2 Comentários:

O SOL do amanhã... disse...

Nossa Daniel, preciso te agradecer, por compartilhar com a gente tantos textos maravilhosos, que me enchem de esperança e renovam a minha FÉ.
um forte abraço!!

Anônimo disse...

Muito tranquilizador saber que hoje os tratamentos evoluiram tanto a ponto de curar muitos tipos de cancer