quarta-feira, 27 de outubro de 2010

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Natal na terra do Repente e do Cordel


Não é por acaso que o Estado do Ceará recebe milhões de turistas por ano, de todos os cantos do mundo. Praias ensolaradas e paisagens encantadoras, gastronomia exuberante, povo acolhedor, artesanato interessante, ritmos sensuais...a lista é imensa.
Estamos com as passagens compradas. Este ano Sandrinha e eu decidimos passar o Natal com os pais dela em Crateús, uma cidadezinha tranqüila e ensolarada do Sertão cearense, no Nordeste brasileiro, onde eles nasceram, cresceram, construíram uma bela história de vida e onde quase todo mundo se trata pelo primeiro nome. Andar com os dois pelas ruas é testemunhar um interminável festival de efusivos cumprimentos e saudações. Todos se conhecem.
Ele, hoje aposentado, foi o dentista de metade da população. Dona Djanira e Dr. Antônio vivem praticamente como viviam em meados do século passado, mas com as comodidades do mundo atual. Seguem uma rotina tranqüila, saudável, flexível e eletiva, quebrada apenas pelas efemérides municipais, pelas eventuais visitas dos filhos e netos ou quando simplesmente decidem quebrá-la, prá variar. Desfrutam de uma qualidade de vida muito superior a da maioria daqueles que migram para a capital em busca de “ser alguém na vida”, diplomas, destaque, certificados, cargos públicos e, paradoxalmente, acabam se perdendo no anonimato estressante e massificador das grandes cidades.
Mas cearense é assim mesmo, andarilho. Não se enrola nem perde a parada. Arretado e avesso a formalismos fuleiros traz no consciente coletivo certa mania de grandeza que ele mesmo é o primeiro a satirizar. E ele tem muito do que se orgulhar. Chegam a ser proverbiais o bom-humor e a presença de espírito na cultura riquíssima desse povo alegre e gozador mesmo diante das adversidades.  
Em Crateús até as obrigações as mais banais têm outro brilho. Ir ao barbeiro, por exemplo. Cortar o cabelo nunca foi algo propriamente agradável pra mim. Faz parte da rotina dos tais cuidados estéticos básicos masculinos, coisa que recuperei depois da fase careca do período da quimioterapia. E foi lá em Crateús, em março, que voltei a freqüentar o barbeiro. O incrível, o único, o inimitável, o inigualável, o insuspeitável, ELE, simplesmente - “Deusin”.
Pode até parecer exagero, mas estou deixando o cabelo crescer desde minha última viagem a Rondônia, em setembro. Não vejo a hora, imaginem, de chegar dezembro para poder sentar de novo na velha poltrona de barbeiro do “Deusin”, caba danado de bom e velho profissional da tesoura da cidade (nos dois sentidos:real e figurado) e me entregar ao prazer lúdico de ficar só escutando os causos, a crônica espirituosa dos fatos (que ele “aumenta, mas não inventa”) e dos personagens populares do cotidiano em Crateús, que ele retrata com um entusiasmo quase infantil e no mais genuíno dialeto cearês. Uma verdadeira viagem pelo imaginário nordestino.
 E tudo recheado com aquelas deliciosas expressões burlescas tipo Vaudeville (termo adulterado do francês, “voix de ville”, voz da cidade) que só a despojada alma cearense cria, fabula e pronuncia corretamente, como “mano véi(velho amigo), “vixe!”, “pimbada”, “xoxota”, “gota serena, fuleiro”, “caba”, “macho”, “abestado”, “arretado”, “danado de bom”, “mijar”, “nos trinques”, “baitola”, “botar boneco” (ser inconveniente), “numsivexe” (não se apresse) e por aí vai, prá citar só aquelas que estou lembrando agora.
Confesso que estou ansioso. Da última vez foi tão bom que quase me “mijei” e acabei fazendo cabelo e barba! - Uma “dilícia”! - como diria Marcos, meu cunhado.

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