quinta-feira, 21 de julho de 2011

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A biela na Venezuela é mais embaixo

Carro revisado: suspensão, parte elétrica, óleo do Carter, filtros de ar, de combustível, de óleo lubrificante, pneus... . GPS com os mapas atualizados do Brasil e da Venezuela.  Passaportes, Certificado Internacional de Vacinação (que não foram pedidos na fronteira), papelada do DETRAN... . Preparativos para enfrentar os 4000 e poucos km através dos estados do Amazonas, Roraima e parte da Venezuela para ir até Isla de Margarita, no litoral caribenho, e voltar a Manaus.

Como já havia feito a viagem antes, em 2006, os mais de 300 (no total mais de 600, ida e volta) infernais km contínuos de buraqueira na rodovia brasileira BR-174 não chegaram a me surpreender totalmente: apenas mudaram de trecho. Mas acho que Sandrinha, Vera, minha irmã e Carlos, meu cunhado e amigo há várias décadas, ficaram meio que apavorados, no início. Mas reagiram bem.

Enquanto isso, já foram demitidos mais de uma dúzia de funcionários do Ministério dos Transportes e do DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes), incluindo o ex-ministro Alfredo Nascimento, ex-prefeito aqui de Manaus, por denúncias de superfaturamento e de pagamento de propina.

Mas, pra quem prefere as aventuras, a evasão da previsibilidade cômoda, chata e engessada dos chamados pacotes turísticos - mesmo sabendo das dificuldades a superar - o desafio era muito excitante. Afinal, Manaus é uma cidade ainda ilhada pela falta de ligação rodoviária com o resto do País. E esta viagem para o Caribe é uma tentação, a única chance de se pegar uma estrada, fazer a própria rota, escapulir da rotina, parar onde quiser, enfim, deixar os instintos nos guiarem, como na famosa série americana Rota 66, que os que já passaram dos 50 devem lembrar muito bem.

Em compensação, o tempo perdido na rodovia brasileira esburacada pode ser parcialmente recuperado nas excelentes estradas venezuelanas - que, no essencial, não devem nada às autopistas da Europa. O terror fica por conta das famigeradas Alcabalas, espécie de postos de controle da Guarda Nacional e do Exercito venezuelano espalhados às centenas ao longo da estrada, guarnecidas por ávidos soldados que criam problemas com os turistas brasileiros para pedir propina descaradamente.

(Uma maneira de se contribuir para acabar com isto é não ceder. Soube depois, conversando com um comerciante brasileiro em Margarita, que os empresários brasileiros locais têm pressionado junto ao Itamarati para tentar amenizar o problema. Acho muito difícil. A corrupção na América Latina é um mal tão arraigado que até parece mais biológico que moral).

A paisagem ao longo da viagem é deslumbrante aos olhos da sensibilidade pela natureza. Passa-se do domínio da Floresta Equatorial Úmida, caracterizada por mata densa e exuberante, para o domínio da Savana que recobre um relevo residual dissecado, de uma planura calma e sublime, onde despontam aqui e ali morros e serrotes, tudo coberto por uma vegetação rala e rasteira. A Gran Sabana está dentro do parque Nacional de Canaima, no sul da Venezuela, no estado de Bolívar. Constitui-se em uma das maiores atrações turísticas do país, com vistas que não se encontram em nenhuma outra parte do mundo.

Bem, se você conseguir superar a buraqueira brasileira e a corrupção venezuelana das estradas, terá que fazer ainda 2 horas de Ferry-boat expresso para chegar a esta ilha secular do mar do Caribe, uma Zona Franca com cerca de 420.000 habitantes, cercada de belas praias como El Agua, Saragoza, Paraiso, El Pargo... e de locais para lamber vitrine no paraíso consumista e enfiar o pé na jaca das compras: confecções, calçados, eletroeletrônicos, jóias e adornos femininos em pérolas cultivadas, coral, madrepérola... Tudo muito, muito barato!

(Além disso, a vantagem cambial. Em Pacaraima, cidade fronteiriça do Brasil, cada Real estava valendo 4,7 Bolívares, que é a moeda lá deles. A gasolina e o diesel custam centavos!).
A hospedagem, para se ter uma idéia, em um chalé maneiro, todo mobiliado, em um condomínio residencial elegante em plena Playa El Agua, o Tejas Rojas, ficou em torno de R$ 75,00 a diaria por casal.

Durante essa breve estadia de uma semana (havia programado pelo menos 10 dias, mas meu cunhado revelou que tinha compromissos inadiáveis de trabalho) pude vivenciar pela televisão, pelo rádio (sim, eu ouço rádio), pelos jornais e pelo movimento nas ruas um pouco da realidade social daquele povo simples, hospitaleiro e crédulo em sua grande maioria, em plena comemoração de sua maior data nacional, a da declaração de sua independência da Espanha, em 5 de julho de 1811.

É impressionante o anacronismo da demagogia, da arrogância, do ufanismo e do nacionalismo “revolucionário” extremado que encharcam os discursos oficiais, repletos de exaltação ao heroísmo histórico do povo e de Simon Bolivar, “O Libertador”, e de excitação histérica e puxa-saquista a Hugo Chavez, El Comandante Supremo Revolucionário. Algo patético, meio quixotesco, mas também perigoso como a História já muito bem o demonstrou. Quem não lembra do Nacional-Socialismo de Hitler e de Mussolini?

Chavez tem atuado a nível continental como se fosse um grande líder político regional, liderança que só ele consegue enxergar. Mas, reparem neste desenho comemorativo do bicentenário da independência venezuelana, que talvez encerre em sua simbologia (a Venezuela montada sobre um cavalo que é a América do Sul) algo muito mais preocupante que a simples pretensão de liderança política.

E nesta minha segunda viagem a Margarita, continuo com a impressão frustrante de ter saído correndo de lá, como foi da primeira vez. E isso, pra mim - que tenho correndo no sangue talvez um pouco daquele betume escaldante do asfalto das estradas - é mais que um simples pretexto pra voltar o mais breve possível e explorar o melhor que a Ilha tem a oferecer, além de usá-la como plataforma para ir explorar os ritmos calientes de Cuba e a diversidade cultural das ilhas holandesas de Aruba e Curaçao.

É só o tempo do carro sair da oficina e de dar uma refrescada na biela!

3 Comentários:

Anitha disse...

Caro Daniel, como é bom tê-lo de volta! São e salvo, ainda por cima! Pois é, você sai para passear, mas não avisa os amigos virtuais, daí...rs...
Apesar que agora, após me encantar com a sua maneira peculiar, poética e expressiva, habilidades inatas em você ao contar suas viagens, até tive uma ponta de inveja...É! Uma invejinha branca, como dizem...rs...
Há uns três anos, estive em Aruba, num passeio fantástico, mas acredito que uma viagem como a sua, pura aventura, deve ser um espetáculo a parte.
De qualquer forma, estou feliz em saber que essa viagem lhe fez bem!
Beijo

Lau Milesi disse...

Olá , boa noite. Cliquei no próximo blog e acabei chegando na estrada. Bela crônica!
Viajar, mesmo que seja driblando os "manchões" das estradas e salpicos de betume,amplia horizontes.
Obrigada por dividir as peculiaridades da terra de Chávez.

Um abraço.

Mirna disse...

Olá, este ano vou de férias para a Isla Margarita. Espero que passá-lo bonito e desfrutar das praias. Estou esperando para chegar ao free shop para comprar um perfume importado, eu sou um fã de perfumes. beijos