Esta história de esperança contagiante, extraída da experiência profissional
deste médico sensível e dedicado nos mostra, tendo como drama central o câncer
de uma garotinha, o confronto de ideias entre duas gerações de médicos, a
evolução da ciência no combate sem tréguas à doença e a permanência dos valores
éticos e morais no exercício da medicina, contrapondo-se à arrogância, à presunção
e ao anacronismo profissional. Mostra-nos também que o dinheiro não compra
tudo, muito menos a alegria inebriante de devolver a vida a uma criança condenada erroneamente pela vaidade de um médico, neste caso, o próprio pai.
Por Dráuzio Varela
Sentei com as caixas de slides no tapete da sala para preparar a aula da
manhã seguinte. Minhas filhas, Mariana, de quatro anos, e Letícia, de dois,
vieram brincar em volta; estava tão cansado no final daquela tarde que cochilei
deitado no chão. Acordei com o telefone. Havia dormido o tempo suficiente para
as meninas tirarem todos os slides das molduras numeradas e espalharem as fotos
pela sala inteira.
No telefone estava meu ex-professor de patologia. Ligava por iniciativa
própria para falar do caso de uma menina de dez anos recém-operada de um tumor pélvico
do tamanho de uma bola de futebol, diagnosticado por ele como um tipo raro de
sarcoma.
Naquela época, meados dos anos 70, surgiam nos Estados Unidos os
primeiros grupos multidisciplinares que revolucionaram a cancerologia. Esses
grupos integravam protocolos que incluíam cirurgia, radioterapia e
quimioterapia administrados de forma sistematizada a grande número de
pacientes, em estudos cooperativos conduzidos concomitantemente em vários centros
internacionais, de modo que os fatores prognósticos pudessem ser analisados com
precisão e as respostas clínicas avaliadas segundo critérios menos subjetivos.
O tratamento do câncer abandonava o empirismo de obedecer à intuição e à
experiência pessoal de cada médico, para ser decidido com base em evidências
científicas.
Expliquei ao patologista que no caso deveria ser aplicado o protocolo do
Intergrupo Internacional criado especialmente para estudar aquele tipo de sarcoma,
que depois da cirurgia preconizava dois anos de quimioterapia seguida de radioterapia,
com resultados muito animadores. Quando terminei, ele me pediu um favor: -
Você poderia dar um pulo agora na casa do professor Torres e repetir para ele o
que disse para mim? O caso é o da filha dele.
O professor Torres era um homem de mais de setenta anos, cirurgião
lendário, controvertido, de temperamento intempestivo, personalista em extremo,
dotado de habilidade incontestável, que havia sido pioneiro na padronização das
técnicas cirúrgicas no Brasil. Fazia parte de uma geração de cirurgiões afeitos
ao estrelismo, diante dos quais os assistentes se calavam mesmo quando tinham
razão e que, no campo operatório, atiravam na parede os instrumentos passados
de forma inadequada. Nas aulas práticas, ao terminar operações complicadas, comprazia-se
em levantar as mãos na direção dos alunos para exibir as luvas impecavelmente limpas
de sangue.
Achei melhor ir antes do jantar, era perto de casa; na volta daria um
jeito nos slides destroçados.
O professor me recebeu de terno e gravata no sofá da sala. Contou que a
esposa havia notado uma tumoração no baixo-ventre da menina. Dois dias depois,
ao palpar o abdômen da filha por insistência da mulher, tomou um susto: - Como
era possível um tumor tão grande numa criança tão saudável?
Supondo tratar-se de uma lesão benigna, ele mesmo realizou a cirurgia.
Encontrou um tumor maligno de mais de um quilo junto à parede da bexiga, além
de diversos implantes menores espalhados pelos tecidos vizinhos. Retirou a
lesão grande e a parte que foi possível das pequenas.
Pela primeira vez na carreira, chorou no final de uma operação.